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A palavra da vítima como prova em crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher e temas correlatos.

Direito ao silêncio e condução coercitiva da vítima, anger manegement e análise de provas em espécie

A palavra da vítima como prova em crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher e temas correlatos. Direito ao silêncio e condução coercitiva da vítima, anger manegement e análise de provas em espécie

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O sistema judicial oprime as mulheres em casos de violência doméstica. Para que a vítima não seja tratada como criminosa, é necessário melhorar a produção de provas.

Resumo: Estuda-se a prova produzida em processos envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, especialmente os tópicos e problemas relacionados à palavra da vítima e suas considerações como prova. O silêncio da vítima e a possibilidade ou impossibilidade de sua condução coercitiva são discutidos, além de temas correlatos, como o tratamento do agressor, dentro do sistema anger management ou manuseio da raiva, além da melhoria das provas em espécie.

Palavras-chave: violência, Lei Maria da Penha, mulher, vítima, palavra, provas, raiva, manuseio, silêncio e condução coercitiva.


1. INTRODUÇÃO

O presente artigo tem por finalidade discutir o papel da vítima na produção de prova decorrente de violência contra a mulher em situação doméstica e familiar. O sistema protetivo tem como base o próprio artigo 5º da Constituição Federal, que preconiza a igualdade entre homens e mulheres e a vedação de tratamento desigual com base em questão de gênero. Entretanto, na prática, há grande distorção entre oportunidades e tratamento, decorrendo diversas formas de violência contra a mulher enquanto gênero. Violência física, patrimonial, sexual, psicológica, dentre outras, descritas no artigo 7º da Lei Maria da Penha.

A Lei Maria da Penha, Lei 11.340/06, institui diversas formas de combate à violência de natureza de gênero. A vítima é a mulher enquanto mulher, buscando a proteção em seu ambiente doméstico e familiar. Nem sempre é tão simples se produzir prova da violência praticada, pois, na maioria das vezes, a agressão não é física, mas psicológica, social e psicológica. Por isso a palavra da vítima, enquanto prova, é tão importante. Muitas vezes acaba sendo a única prova apta à comprovação do crime.

Como prova, a palavra da vítima (o seu termo) deve ser submetida à ampla defesa e ao contraditório. Essa submissão, apesar de ser determinada constitucionalmente, acaba gerando problemas práticos, como alguns que citaremos no corpo do artigo.

A linha do artigo traz considerações sobre o espírito da Lei Maria da Penha, focando na natureza protetiva e não se tutela legal, nos problemas decorrentes da participação da vítima na produção da prova em sede judicial (não comparecimento e condução coercitiva, direito ao silêncio e falso testemunho), além de indicar algumas diretrizes da produção da prova objeto do artigo (palavra da vítima) e outras provas corroborativas (que comprovam a palavra da vítima).


2. LEI MARIA DA PENHA: ESPÍRITO DO SISTEMA DE proteção.

O Brasil é um dos países onde há mais mortes de mulheres por seus companheiros no mundo1. Além dos crimes relacionados ao Feminicídio (Homicídio qualificado pela morte da mulher, pela sua condição de gênero), há uma gama de crimes de menor gravidade praticados no dia a dia, com uma evidente cifra negra, já que apenas uma pequena fração desses crimes chega ao Poder Judiciário.

Visando dar efetividade à proteção que a mulher necessita, foi criada a Lei Maria da Penha, sancionada em 7 de agosto de 2006, como Lei n.º 11.340. A lei ganhou este nome devido à luta da farmacêutica Maria da Penha para ver seu agressor condenado. A lei se aplica quando há situação de vulnerabilidade em relação ao agressor. Este não precisa ser necessariamente o marido ou companheiro: pode ser um parente ou uma pessoa do seu convívio. A Lei trouxe algumas características básicas, como: a) possibilidade de prisão do agressor, especialmente em caso de descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência (artigo 24-A, da Lei Maria da Penha); b) a violência doméstica passar a ser um agravante para aumentar a pena; c) não é possível mais substituir a pena por doação de cesta básica ou multas; d) ordem de afastamento do agressor à vítima e seus parentes; e) assistência econômica no caso da vítima ser dependente do agressor; f) dentre outras.

O espírito da Lei é o de proteção. Reconhece expressamente que há uma distorção entre a igualdade formal preconizada entre homens e mulheres e a igualdade material, além de reconhecer que há casos, infelizmente vultosos, em que a mulher é vítima de violência física e psicológica decorrente de suas relações domésticas, familiares e afetivas. A Lei sofreu e sofre críticas de diversos grupos reacionários, alegando que, ao criar a diferenciação em Lei, acaba criando conflitos indevidos entre homens e mulheres. Da mesma forma os citados grupos alegam que os homens também podem ser vítimas de violência por parte da mulher e deveriam ser protegidos por alguma forma legal (citam, ironicamente, a necessidade de criar a Lei Chico da Penha).

O ordenamento legal busca a reparação de conflitos, devendo trazer elementos para a pacificação social. O espírito da Lei Maria da Penha não é agravar conflitos, mas resolvê-los ou atenuá-los. A Lei não visa colocar a mulher contra o homem. Pelo contrário. A Lei pode ser resumida em suas finalidades básicas, ou seja, quanto ao seu espírito normativo. São eles: a) reconhecer que a mulher, em situação de vulnerabilidade social, psicológica e econômica, pode ser vítima de agressão a seus direitos à integridade física, psicológica, patrimonial e cultural; b) o sistema legal e jurídico deve proteger a mulher da forma mais eficaz possível, incluindo a coordenação com serviços sociais; c) enfrenta-se a agressão através da prevenção, com Medidas Protetivas de Urgência, repressão, com a punição do agressor, e reparação, com o acompanhamento da vítima e do agressor; d) a Lei não criou crimes específicos, salvo exceções (como o crime de Descumprimento de Medidas Protetivas de Urgência), mas trouxe reformas pontuais em outros diplomas normativos, como agravantes a crimes já existentes, por isso, substancialmente, a Lei Maria da Penha é uma Lei de espírito protetivo e não repressivo.

Complementa-se com um ponto essencial para entender a questão da produção de provas: o sistema é de proteção e não de tutela. Tutela pode ser definida como a “proteção exercida em relação a alguém ou a algo mais frágil”. Tutela, conceitualmente, contém a proteção. No entanto é indevido afirmar que a mulher é tutelada pelo sistema normativo. A mulher é plenamente capaz de se proteger sozinha e não pode ser considerada mais frágil do que o homem, salvo quando se esteja falando de confrontação física. O sistema é de proteção, acionável excepcionalmente. Isso quer dizer que não se pode presumir a incapacidade da mulher em se defender e defender seus direitos, passando-se a tratá-la como incapaz.

As considerações são importantes para compreender que a mulher deve ser protegida, mas não tutelada, e que, quando essa se coloca em uma posição de risco ou de violência (perdoando o agressor, aceitando atos de machismo do companheiro, dispensando medidas protetivas de urgência, por exemplo), não cabe ao Estado intervir, salvo quando houver indícios concretos de violência (sexual, patrimonial, psicológica e física).

A aplicação prática desse espírito normativo pode ser compreendida com a seguinte afirmação: não cabe ao Estado dizer como a mulher deve viver e obrigá-la a agir contra a sua própria vontade. Em suma, o espírito da Lei é proteger a mulher em situação concreta de vulnerabilidade, não se podendo falar em tutela legal, aplicável a incapazes (por presunção legal, como menores de idade).

O STJ, no REsp 1.775.3412 basicamente segue a linha acima. Decidiu que, "antes do encerramento da cautelar protetiva, a defesa deve ser ouvida, notadamente para que a situação fática seja devidamente apresentada ao juízo competente, que, diante da relevância da palavra da vítima, verifique a necessidade de prorrogação/concessão das medidas, independentemente da extinção de punibilidade do autor". Em decisão unânime, acompanhando o voto do relator, a Terceira Seção do STJ deu provimento ao recurso da vítima para assegurar que ela seja ouvida sobre o fim das medidas protetivas, as quais poderão ser mantidas caso se constate a permanência da situação de perigo. Ou seja, escuta-se a vítima e se mantem a proteção em caso dessa requerer ou se for indicado a sua necessidade em havendo situação de perigo (concretamente se falando e não por mera presunção legal, frise-se).


3. O SISTEMA CRIMINAL: A PALAVRA DA VÍTIMA

Há duas circunstâncias básicas acerca da violência doméstica e familiar contra a mulher. A primeira, diz respeito ao envolvimento de paixão como motivador. Paixão pode ser definida como a emoção violenta. É uma face de duas moedas. Move amores e ódios. Move declarações de amor eterno e romances de novela e move feminicídios e destruição das vidas humanas envolvidas. A segunda circunstância decorre da primeira: o ato de agressão, salvo exceções, é praticado sem testemunhas, dentro do abrigo familiar e, assim, raramente deixa testemunhas.

Exatamente por ser praticado em atos de explosão e no ambiente familiar, em regra, é que a prova primordial para comprovação do crime é a palavra da vítima. A regra vigente no direito criminal brasileiro é a de que as provas não são tarifadas, ou seja, não tem peso maior ou menor que as demais, devendo ser devidamente fundamentadas pelo Juiz de Direito ao condenar ou absolver o réu. No entanto, por reconhecimento jurisprudencial3, a palavra da vítima acaba tendo um peso probatório maior como prova (standard probatório).

No entanto a palavra da vítima deve ser corroborada por outras provas, diretas ou indiretas, sob pena de se tornar abusiva. A palavra da vítima, do ponto de vista da acusação, poderá: a) estar embasada em outras provas, mesmo que indiretas, e servir para a condenação; b) estar isolada, sem embasamento em outras provas, mas, pelas circunstâncias pessoais da vítima e do agressor, ser valorada pelo Juiz de Direito como aptas à condenação; e c) estar dissociada de outras provas, além de, pelas circunstâncias pessoais, haver indicativo de abuso na palavra da vítima, que poderá estar movida por outros sentimentos que não a pura e simples busca por justiça4 (vingança, stalking, interesse patrimonial etc.). A palavra da vítima, como prova, não é uma prova da acusação, evidentemente. Toda prova produzida judicialmente pertence ao processo e não às partes. Ou seja, tecnicamente não se pode afirmar que a palavra da vítima ou o depoimento de determinadas testemunhas são provas da acusação ou da defesa, já que pertencem ao processo e devem ser produzidas e repetidas em busca da verdade real.

Assim, em complemento ao afirmado acima, a palavra da vítima tanto pode servir como prova para a condenação quanto para a absolvição. E, na praxe jurídica, verifica-se que o último caso não é uma exceção. É bastante comum acontecer de a vítima mudar de opinião entre a apresentação da representação criminal (registro de Boletim de Ocorrência ou outra forma) e a audiência preliminar prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha (audiência de confirmação da retratação da representação) ou até à audiência de instrução e julgamento. Essa mudança de opinião poderá levar ao arquivamento do processo por ausência de condição de procedibilidade para o oferecimento da denúncia (caso de crimes com ação condicionada à representação da vítima, como é o caso do crime de AMEAÇA, previsto no artigo 147 do Código Penal) ou à absolvição por ausência de provas, mormente se a palavra da vítima for a única prova apresentada pelo Ministério Público quando do oferecimento da denúncia.

Abaixo seguem problemas concretos relacionados com a prova indicada e suas implicações.


4. PROBLEMAS CONCRETOS RELACIONADOS À PALAVRA DA VÍTIMA a COMO PROVA

4.1. A PALAVRA DA VÍTIMA COMO PROVA ISOLADA

O primeiro problema apontado é a inexistência de provas confirmatórias do depoimento da vítima. Tais provas poderiam ser comprobatórias da materialidade do crime (exame de corpo de delito, por exemplo) ou da autoria e tipicidade (depoimento de testemunhas, imagens de câmeras de segurança, prints ou áudios de conversas por aplicativos etc.). Ou seja, as provas confirmatórias do depoimento da vítima são materiais, diretas ou indiretas. No caso de provas indiretas, cita-se o depoimento de testemunhas e informantes que possam atestar o comportamento agressivo do réu, a situação de violência psicológica e patrimonial sofrida pela vítima, dentre outras.

A praxe jurídica indica que o problema gerado pela ausência de provas confirmatórias do depoimento da vítima passa mais pela omissão da autoridade policial e do Ministério Público do que da inexistência de provas, já que a violência familiar e doméstica contra a mulher deixa rastros inequívocos, mesmo que de forma psicológica.

Conforme citado em tópico anterior, quanto à palavra da vítima pode: a) estar corroborada por outras provas e servir à condenação (ou à absolvição, obviamente); b) estar sem amparo em provas diretas ou indiretas, mas, pela circunstância pessoal da vítima e do réu (confronto entre a versão de ambos) servir para a condenação; e c) estar sem amparo em outras provas e, pela forma como foi coletada, especialmente quando for desconexa (incluindo possível denunciação caluniosa praticada pela vítima), não ter a aptidão para trazer um mínimo de certeza para a condenação do réu.

A autoridade policial não pode fundamentar o seu indiciamento e o Ministério Público não pode denunciar com base apenas no relato da vítima, devendo atuar na produção de outras provas, diretas ou indiretas. A mera desculpa de que o crime foi praticado sem testemunhas não desobriga à produção de outras provas, como oitiva de parentes próximos (filhos, inclusive) como informantes, vizinhos, prestadores de serviços, dentre outras, como a busca pela motivação das agressões (violência patrimonial, inclusive) e pesquisa mais acurada sobre a violência psicológica sofrida pela vítima (que pode fundamentar a denúncia pela prática do crime de dano emocional contra a mulher5).

Os órgãos de persecução devem compreender que as agressões praticadas precisam estar comprovadas por um amplo acervo probatório, que tanto sirvam para atestar a validade do depoimento da vítima, quanto sirvam mesmo para a condenação caso a vítima distorça o depoimento prestado anteriormente na fase preliminar de investigação. Ou seja, os órgãos de persecução devem se antecipar à hipótese de a vítima mudar o depoimento, trazendo provas aptas à condenação.

4.2. A VÍTIMA SE RECUSA A COMPARECER À AUDIÊNCIA

É possível que a vítima não queira comparecer à audiência designada.

Apenas para delimitar melhor o tema, esclareça-se que há diferentes soluções jurídicas para cada tipo de audiência. É comum haver a designação de audiência confirmatória da representação criminal ou da retratação da representação, em casos de crimes de ação penal condicionada à representação, como é o caso do crime de ameaça, um dos mais comuns envolvendo violência doméstica e familiar. Acaso o Juiz de Direito designe tal audiência, prevista no artigo 16 da Lei Maria da Penha6, e notifique a vítima e, essa não comparecendo, presume-se que manteve a representação apresentada anteriormente ao registrar o Boletim de Ocorrência ou requerer medidas protetivas de urgência. É a interpretação lógica do artigo 16 da Lei Maria da Penha, já que a retratação deve ser expressa, conforme decidiu o STF na ADI 72677. Assim, caso não compareça ao ato, o processo seguirá, com recebimento da denúncia (acaso já oferecida) e citação do réu para apresentar resposta à acusação e atos seguintes.

Outra situação é a notificação da vítima para comparecer à audiência de instrução e julgamento, quando será inquirida sobre os fatos que levaram ao oferecimento da denúncia criminal. Após o recebimento da denúncia, citação, resposta à acusação e confirmação do recebimento da denúncia, o Juiz de Direito designa audiência para produção de provas, notificando-se vítima, informantes, testemunhas (arroladas pela acusação e pela defesa) e réu para comparecerem ao ato. A vítima é ouvida em primeiro lugar, descrevendo os detalhes da agressão (onde, quando, como, por que, quem, consequências etc.). A questão levantada é: o que fazer se a vítima se recusar a comparecer ao ato? Ou seja, acaso notificada formalmente por Oficial de Justiça, recuse-se a participar da instrução.

Levantamos as seguintes hipóteses: a) não comparecendo à audiência de forma injustificada, o Juiz poderá redesignar a audiência para data mais próxima possível, determinando-se nova notificação da vítima para comparecer ao ato, com ou sem a advertência de condução coercitiva8; e b) a audiência seguirá sem a vítima, com a produção das demais provas, seja em caso de não redesignação da audiência ou redesignada sem a ordem de condução coercitiva e se reiterando o não comparecimento.

Nossa posição é que, em caso de não comparecimento imotivado, seja redesignada a audiência, com nova notificação da vítima para comparecer ao ato, e, acaso não compareça novamente, que a instrução siga sem a sua oitiva. Isso quer dizer que somos contra a condução coercitiva da vítima em crimes de violência doméstica e familiar9. Conduzir coercitivamente é, substancialmente, determinar que o Oficial de Justiça, acompanhado de força policial, compareça à residência da pessoa a ser ouvida e a leve à força para a sala de audiências. É, sem sombra de dúvidas, um ato de força e, no caso da vítima, um ato abusivo.

A condução coercitiva da vítima de crimes contra a mulher é a reprodução de várias violências anteriores e omissão do Estado e da sociedade com aquela. O Estado permitiu a violência contra a mulher ao estar fundamentado em bases patriarcais, não conseguiu reprimir a ação criminosos e não conseguiu evitar que a mulher fosse vítima de crimes dentro de seu ambiente doméstico e familiar, e não conseguiu atrair a confiança da vítima nos ditames da justiça estabelecida. Ao obrigar a mulher a comparecer à audiência contra a sua vontade, inclusive com uso de força policial, estará mais uma vez violentando os seus direitos, transformando a mulher em criminosa de forma simbólica.

Os órgãos de investigação e persecução, respectivamente a polícia judiciária e Ministério Público, devem se antever à essa situação, trazendo um arcabouço probatório mínimo, sem embasar-se apenas no depoimento da vítima como prova. Frise-se que o depoimento da vítima em sede policial poderá ser valorado pelo Juiz de Direito, especialmente quando for comprovado por provas produzidas sob o crivo do contraditório e da ampla defesa. As provas produzidas em sede de Inquérito Policial não podem ser usadas de forma exclusivas para a condenação, mas podem ser utilizadas acaso estejam amparadas pelas demais provas10. Tomemos uma situação: MARIA, vítima, descreve em detalhes a agressão (crime) sofrida à autoridade policial. Ao ser notificada para a audiência de instrução, por ter se reconciliado com o agressor (réu), recusa-se a comparecer à audiência. LUZIA e PEDRO, testemunhas ouvidas em sede de instrução criminal, confirmam o depoimento prestado por MARIA na fase preliminar. Essa confirmação, além de outras provas de natureza documental, embasa a versão da vítima (mesmo sem o contraditório judicial), podendo, tranquilamente, ser utilizada na sentença condenatória.

Portanto, ao juntar provas confirmatórias do depoimento da vítima, os órgãos de persecução anteverão a possível recusa da agredida a comparecer ao ato (ou comparecer e mudar o depoimento) sem a necessidade de utilizar o abuso institucional que é a condução coercitiva.

Apenas por amor à dialética, frisamos que a matéria é polêmica e não pacificada nos tribunais. Tanto ocorre discussão acerca da possibilidade de condução coercitiva da vítima, alegando que essa não pode deixar de comparecer ao ato judicial, pois o interesse deixa de ser dela e passa a ser do Estado-Juiz; quanto ocorre discussão acerca da (im)possibilidade do uso de provas repetíveis (como é o caso de depoimentos de vítimas, testemunhas e informantes) produzidas apenas durante o Inquérito Policial para a condenação do réu. De todo modo reiteramos nossa posição, reafirmando que o Estado, em nome de tecnicismos, não pode permitir a revitimização ou vitimização secundária, que é uma série de atos e questionamentos que geram constrangimentos nas mulheres que foram vítimas de violências de gênero11.

4.3. O DIREITO AO SILÊNCIO POR PARTE DA VÍTIMA.

Esse tópico é um complemento do tópico anterior, aplicando-lhe substancialmente as mesmas palavras. Aqui a vítima comparece ao ato judicial para ser ouvida pela autoridade. Ocorre que prefere não falar nada. Silencia sobre os fatos.

As questões postas são: a vítima tem direito a ficar em silêncio, negando-se a responder às perguntas que lhe forem feitas? Acaso fique em silêncio, a vítima poderá responder por algum crime?

Antes de se chegar a tanto, temos que compreender, sempre de acordo com o caso concreto, os motivos que levam a vítima a não querer falar. Pode ter ocorrido a reconciliação com o agressor e essa entenda que suas palavras podem ser prejudiciais ao réu, ou seja, ela perdoou a agressão e intenta conseguir a absolvição do agressor, por isso o silêncio. Pode ser que a vítima esteja sendo vítima de alguma espécie de chantagem, manipulação mental (gaslighting12), ameaças de morte etc. É comum até mesmo que tenha sido orientada juridicamente a ficar em silêncio pelo advogado do réu, apesar da duvidosa questão ética envolvida e até mesmo de possível crime (partícipe no crime de falso testemunho, previsto no artigo 342, do CP).

ANA LUIZ MORATO13 tratou dessa questão, afirmando que, geralmente, o requerimento do direito ao silêncio vem acompanhado pela argumentação da aplicação direta do artigo 13 da Lei Maria da Penha, que prevê a possibilidade de aplicação subsidiária e complementar de outras legislações específicas, bem como do inciso IV do artigo 5º da Lei 13.431/2017, que trata do direito da criança e do adolescente de permanecer em silêncio, quando vítimas ou testemunhas de violência. Também cita o Enunciado 50 do FONAVIDi, in verbis: “Deve ser respeitada a vontade da vítima de não se expressar durante seu depoimento em juízo, após devidamente informada dos seus direitos.”

O direito ao silêncio da vítima não tem previsão legal de forma expressa, salvo se fazendo a interpretação sistemática citada acima. A previsão dessa garantia em nosso ordenamento jurídico é taxativa em benefício do acusado, regra consentânea, aliás, com o sistema acusatório, pelo qual, ninguém é obrigado a produzir provas contra si mesmo (art. 186. do CPP). Por isso a autora citada afirma que o magistrado deverá observar possíveis armadilhas jurídicas, que, em nome da não revitimização acabe por favorecer o agressor.

Entendemos que a vítima precisa ser protegida, mas não indevidamente tutelada, conforme já exposto anteriormente. Em suma: a mulher, vítima de violência doméstica, deve ter todo o apoio do Estado em busca de sua proteção integral, física e psicológica. Mas essa proteção não tira a sua capacidade de se autodefender e de fazer escolhas, mesmo que se colocando em risco. Ou seja, a vítima tem plena liberdade de perdoar o agressor e voltar a conviver com esse. É livre para tanto.

Assim, caso a vítima queira usar o silêncio, entendemos que ela não pode ser constrangida a falar contra a sua vontade, mesmo que isso prejudique a formação da prova. Deverá, naturalmente, ser devidamente esclarecida da situação, do risco da reiteração das agressões, dentre outras. Mas não obrigada a falar, principalmente com ameaças de prisão e de responder a processo por crimes de denunciação caluniosa ou falso testemunho.

Apliquemos o afirmado anteriormente quanto à condução coercitiva. Cabe aos órgãos de persecução trazerem arcabouço probatório suficiente para a condenação do réu, mesmo que a vítima fique em silêncio ou, o que é mais comum, que mude o depoimento prestado em sede policial. Naturalmente, em havendo indícios de que a vítima se moveu por motivação diversa do que a busca por proteção e justiça, ou seja, que mentiu ao registrar o Boletim de Ocorrência buscando perseguir ou se vingar do réu, é possível que seja investigada pela prática do crime de denunciação caluniosa. Mas o mero silêncio não tem o condão de atrair a imputação objetiva de tal tipo penal.


5. DA NECESSIDADE DE MELHORIA NA COLETA DE PROVAS: ANÁLISE DE ALGUMAS PROVAS PRODUZIDAS E SUA UTILIDADE NO PROCESSO

5.1. NATUREZA DA PROVA: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES

Substancialmente, defendemos que a prova em qualquer tipo de crime deve ser ampla. Não se pode oferecer denúncia criminal com base em apenas uma prova, seja qual for a sua natureza. A presunção de inocência e os demais direitos constitucionais exigem que alguém que seja processado, saiba pelo que está sendo processado e lhe sejam apresentadas as provas produzidas pelo Estado-persecutor contra si. As provas são diretas e indiretas, materiais ou testemunhais, dentre outras classificações. De todo modo, mesmo que haja uma única prova direta, como o depoimento da vítima, outras provas deverão ser produzidas, sejam materiais (perícias e exames de corpo de delito etc.) ou testemunhais.

Acerca da prova criminal, devemos ter em conta o que dispõe o artigo 155 do Código de Processo Penal, que baliza a sua produção. Vide: Art. 155. O juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas.

A prova é a soma dos motivos geradores da certeza, atingindo seus aspectos objetivos, subjetivos e conceitos. Desse modo, a prova é constituída por todos os fatos e acontecimentos, coisas, pessoas e circunstâncias úteis para formar a convicção do julgador acerca do acontecido.

O meio de prova é o instrumento que tem como objetivo levar ao processo um elemento ou informação, que o julgador irá usar para formação de sua convicção. Por ser de grande relevância, o Código de Processo Penal, aplicável em processos envolvendo a violência doméstica e familiar contra a mulher, traz em seu texto os meios de provas, são estes: Prova pericial, Exame de corpo de delito, Documental, Testemunhal e Prova emprestada.

Os meios de produção de provas previstos em lei, encontram-se nos artigos de 158 a 250, do CPP. Acerca dessas provas, faremos abaixo as considerações com os complementos necessários quando se trata de violência doméstica e familiar, além de complementar com outros dispositivos legais, especialmente as normativas de provas previstas na própria Lei Maria da Penha.

5.2. OITIVA DA VÍTIMA E SUAS CIRCUNSTÂNCIAS (DIRETRIZES E PROCEDIMENTO)

O Código de Processo Penal lista algumas provas, mas tal rol é exemplificativo, pois todos os elementos que possam ser documentados nos autos e que sirvam para fundamentar a decisão judicial, condenatória ou absolutória, tecnicamente são provas, havendo apenas algumas regras básicas de sua produção, como, por exemplo, serem lícitas.

Dentre as provas produzidas em sede de crimes de violência doméstica e familiar contra a mulher, podemos citar algumas, descritas abaixo.

Salvo em caso de crimes em que a vítima tenha vindo a óbito, como é o caso do feminicídio e lesão corporal seguida de morte, o depoimento da vítima acaba sendo a primeira prova produzida. O Inquérito Policial normalmente é instaurado a partir de um Auto de Prisão em Flagrante, gerado por uma denúncia de conflagração doméstica, na qual a Polícia Militar, atendendo ao caso, prende o agressor e conduz esse e a vítima até a delegacia de polícia para as providências legais. A praxe indica que essa é a maior entrada de casos envolvendo violência doméstica no Poder Judiciário. Mas também é possível que a vítima tenha comparecido à Delegacia de Polícia, registrado um Boletim de Ocorrência e, com base nesse, a autoridade policial instaure a investigação. Em menor nível de ocorrência, é possível que a investigação surja de outras formas de entrada, como Boletins de Ocorrência registrados por terceiros envolvidos (parentes da vítima), representações apócrifas (com denunciantes conhecidos pela polícia, mas com nomes preservados) e anônimas, após o levantamento de informações preliminares, notificação de hospitais (onde a vítima deu entrada após ser agredida) dentre outras.

De todo modo, seja qual for a origem da ocorrência, um dos primeiros atos da autoridade policial é ouvir a vítima.

A Lei Maria da Penha foi atualizada através da Lei Lei nº 13.505, de 2017 acerca das diretrizes dessa oitiva. Primeiro, segundo o artigo 10-A, da LMDP, é direito da mulher em situação de violência doméstica e familiar o atendimento policial e pericial especializado, ininterrupto e prestado por servidores - preferencialmente do sexo feminino - previamente capacitados. Essa regra busca humanizar a oitiva, evitando que o ambiente masculino e, muitas vezes tóxico, constranja a vítima, afastando-a do sistema protetivo.

As diretrizes da oitiva estão previstas no parágrafo primeiro do artigo 10-A, da Lei, sendo as principais: I - salvaguarda da integridade física, psíquica e emocional da depoente, considerada a sua condição peculiar de pessoa em situação de violência doméstica e familiar; II - garantia de que, em nenhuma hipótese, a mulher em situação de violência doméstica e familiar, familiares e testemunhas terão contato direto com investigados ou suspeitos e pessoas a eles relacionadas; e III - não revitimização da depoente, evitando sucessivas inquirições sobre o mesmo fato nos âmbitos criminal, cível e administrativo, bem como questionamentos sobre a vida privada.

O procedimento de escuta é previsto no parágrafo segundo do citado artigo, sendo esse: I - a inquirição será feita em recinto especialmente projetado para esse fim, o qual conterá os equipamentos próprios e adequados à idade da mulher em situação de violência doméstica e familiar ou testemunha e ao tipo e à gravidade da violência sofrida; II - quando for o caso, a inquirição será intermediada por profissional especializado em violência doméstica e familiar designado pela autoridade judiciária ou policial; III - o depoimento será registrado em meio eletrônico ou magnético, devendo a degravação e a mídia integrar o inquérito.

Aqui já apontamos um procedimento que tem o condão de diminuir os problemas indicados na introdução do artigo, relacionado à não oitiva em sede judicial da vítima. Ao tomar o depoimento da vítima de forma eletrônica (vídeos), a autoridade coletará informações que tendem a se perder com o tempo e com a mudança de estado anímico da vítima (mudança de opinião) e com a perda natural da memória. Indicamos como informações: i) o estado mental da vítima, principalmente o estado de ânimo relacionado ao medo, raiva, angústia, dentre outros, que é facilmente perceptível ao se reproduzir o vídeo em sede judicial, e que tem o condão de comprovar, por exemplo, que as ameaças (147, do CP) proferidas pelo réu foram viáveis e suficientes para causar medo na vítima; ii) coleta imagens de ferimentos e lesões, mesmo que leves, provocadas na vítima, indicando se são lesões de ataque ou de defesa (tentando reconstruir com imagens a sequência das agressões); iii) consequências dos atos de agressão (impacto nos filhos, patrimônio da vítima, estabilidade emocional etc.; iv) todos os atos complementares, que entenda serem viáveis para a instrução.

Sem querer esgotar o tema, reiteramos que, ao proceder à forma correta de oitiva da vítima, com as cautelas legais, a autoridade policial evitará os problemas citados alhures. Reiteramos a aplicação do artigo 155, do CPP, no qual é possível o uso de provas produzidas em sede policial para condenar o agressor, desde que comprovadas por outros elementos de prova, naturalmente. É possível, inclusive, fazer o contraponto entre o depoimento prestado pela vítima em sede policial (logo após o fato, ainda tomada pelo impacto do crime, com o ânimos respectivo) e o prestado em sede judicial, devendo o juiz dar o valor da prova que lhe é cabível. Por exemplo, imaginando-se a situação bastante comum em que a vítima muda de opinião entre o primeiro depoimento (policial) e o segundo (judicial). No primeiro depoimento, gravado em mídia digital, descreve em detalhes todas as circunstâncias, inclusive a sequência de lesões (lesões de ataque e lesões de defesa). No segundo, após algum fato posterior (reconciliação, chantagem familiar ou patrimonial, ameaças por parte do réu etc.) nega que tenha sido agredida, alega que as lesões foram provocadas por fato estranho ao processo (queda, por exemplo) ou que ela foi quem deu início ao conflito físico e que o réu apenas se defendeu. Nesse caso, ambos os depoimentos da vítima deverão ser analisados pelo Juiz de Direito, dando o devido valor. No caso, havendo elementos indicativos de que a vítima está sofrendo algum tipo de chantagem ou violência, nova investigação deverá ser determinada para apurar o crime previsto no artigo 147-B, do CP (violência psicológica).

5.3. PROVAS confirmatórias DA palavra da vítima

Por fim, indicamos na questão da produção das provas confirmatórias da palavra da vítima, alguns cuidados básicos a serem tomados pela autoridade policial (Delegado de Polícia) e Promotor de Justiça ainda na fase preliminar.

5.3.1. PRODUÇÃO E ANÁLISE DO FORMULÁRIO NACIONAL DE AVALIAÇÃO DE RISCO VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER.

O relatório citado é fornecido pelo CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA14 e indica a avaliação de riscos, devendo ser preenchido pela vítima, com ou sem auxílio de servidor público (equipe de apoio ou agente de polícia). Mas não basta preencher o formulário e proceder à sua juntada meramente burocrática aos autos do Inquérito Policial. Com base em tal relatório é viável a tomada de outras providências complementares, como a instauração de investigação acerca de outros crimes (violência psicológica, estupro marital etc.). O Promotor de Justiça, ao oferecer a denúncia, deve analisar e fazer um resumo fático dos dados constantes do relatório, especialmente se tais informações forem juridicamente relevantes (dados sobre o fato, sobre o agressor, sobre a vítima e terceiros envolvidos, como filhos e eventual impacto do crime em questões patrimoniais e sociais etc.).

5.3.2. APLICAÇÃO DO SISTEMA anger management (manuseio da raiva).

O descontrole da raiva e das emoções mais fortes (paixão) leva à violência. Tal fator é mais grave em países de tradição patriarcal e com machismo institucionalizado. BRENA O’DWYER15, citando JIMENO16, afirma que os crimes passionais são cometidos principalmente por homens, e isso demonstrado que existem hierarquias de gênero presentes nessa ação. Culpar a paixão pelo ato violento é um processo de ocultamento dos sentimentos e pensamentos socialmente apreendidos que levam à violência. Ainda segundo a autora, existe uma tradição cultural ocidental que associa o uso da violência com a explosão emocional. Essa tradição descansa na concepção das emoções como instintivas, incontroláveis, animalescas, concepção essa que está em consonância com a concepção de sujeito moderna como cindido entre razão e emoção. Se a emoção é irracional, a força que leva o indivíduo a usar a violência nos crimes de ódio, nos casos apresentados por Jimeno ira e ciúme diminuem a culpabilidade.

Pelos motivos acima é que se torna necessário compreender que o manuseio da raiva, com o seu controle e reavaliação de origem, é tão necessário para a redução da violência de gênero. Segundo o psiquiatra suíço CARL GUSTAV JUNG17 a neurose é a expressão de um processo perturbado de uma totalização do ser humano e faz parte do seu processo de Individuação. A neurose é um pacto provisório, uma espécie de solução passageira que antecede uma tentativa propícia de solução.

Trazendo a lição do mestre para o nosso problema de manuseio da raiva (anger management) podemos afirmar o seguinte: a) todos nós somos movidos por instintos primitivos, voltados ao sexo e à violência; b) socialmente, somos obrigados a reprimir tais instintos, pois, do contrário, seríamos predadores sexuais e assassinos em série, gerando caos e desordem, ou seja, somos obrigados a reprimir nossos instintos mais primários; c) ao reprimir tais instintos criamos as neuroses, que podem ser representadas como um balão em nossa mente, onde são colocadas todas as nossas vontades primitivas e socialmente reprimidas; d) tal balão, com as nossas neurores (desejos e vontades reprimidas, mesmo que inconscientemente), pode estourar, acaso não seja esvaziado vez ou outra; e) o processo de anger management parte da ideia de que a raiva e a violência (consequências do estouro do balão) precisam ser moduladas, direcionadas, reduzidas e não necessariamente reprimidas.

Ao ouvir a vítima, informantes, condutores (policiais que efetuaram a prisão do agressor), a autoridade policial passará à oitiva (interrogatório) do autuado/investigado. Nesse momento, com base nas provas anteriores, já terá um quadro psicológico mínimo do agressor, verificando se esse possui algum tipo de descontrole de sua raiva e paixões, ou até mesmo, se é incapaz de entender o fato ilícito praticado.

A Lei Maria da Penha prevê, no artigo 22, VI e VII, a aplicação de medidas protetivas contra o autor da violência, sendo essas o comparecimento do agressor a programas de recuperação e reeducação; e o acompanhamento psicossocial do agressor, por meio de atendimento individual e/ou em grupo de apoio.

Ou seja, mesmo que indiretamente, a nossa legislação adotou o sistema de anger management18, ou manuseio da raiva, em tradução livre. O sistema é adotado nos EUA, com relativo sucesso. Vide a definição do programa:

Anger management is a psycho-therapeutic program for anger prevention and control. It has been described as deploying anger successfully. Anger is frequently a result of frustration, or of feeling blocked or thwarted from something the subject feels is important. Anger can also be a defensive response to underlying fear or feelings of vulnerability or powerlessness. Anger management programs consider anger to be a motivation caused by an identifiable reason which can be logically analyzed and addressed 19.

Talvez aqui resida a maior causa do fracasso do sistema protetivo decorrente da Lei Maria da Penha. Não adianta apenas prender o agressor, aplicar medidas protetivas (que raramente são cumpridas), encaminhar a vítima a acompanhamento social ou psicológico, dentre outras, se o grande problema, que é a origem da agressão, não é atacado. Por isso cabe ao Delegado de Polícia, na fase preliminar, ao Promotor de Justiça e ao Juiz de Direito, na audiência de custódia ou audiência de instrução, quando estiverem ouvindo o investigado/réu inquri-lo acerca da sua intenção em se submeter ao sistema anger management. Em sendo positivo, deverá ser encaminhado a tratamento contra os efeitos do álcool (AA), drogas ilícitas, acompanhamento psicossocial, submissão a grupos de apoio (inclusive encontros de casais, seja em grupos laicos ou religiosos), dentre outros. Pela praxe, podemos afirmar que dificilmente o agressor recusará o tratamento, pois a opção que lhe é oferecida não é melhor (podendo ser até mesmo o cárcere).

Atacando-se o problema da origem da agressão e do descontrole da raiva e das paixões, tem-se a esperança de salvar vidas e evitar um quase certo feminicídio futuro.

5.3.3. PROVAS PERICIAIS E DOCUMENTAIS

Segundo Nucci20, denomina-se materialidade a prova da existência do crime. Para haver condenação, é imprescindível a prova da materialidade e da autoria. Algumas infrações penais deixam vestígios reais, ou seja, rastros que podem ser visualizados (ex.: o cadáver, no crime de homicídio, hematomas na vítima do crime de lesão corporal). Por isso, quando o delito deixar esse tipo de vestígio material é indispensável o exame de corpo de delito (art. 158, CPP). Ainda segundo o mestre citado, corpo de delito é a materialidade do crime. Exame de corpo de delito é a perícia que se faz para apontar a referida materialidade. Logo, não são sinônimos. Surge, então, o corpo de delito direto e o indireto. De forma direta, realiza-se por perícia, a forma científica mais próxima de se atestar a existência ou inexistência de algo (ex.: drogas). De forma indireta, o corpo de delito advém da prova testemunhal (art. 167, CPP). Não é a forma correta e ideal, mas um escape para evitar a impunidade de certos delitos (ex.: testemunhas veem o agente desferir vários tiros na vítima, jogando-a, depois, de um penhasco nas águas do mar, onde desaparece). A possibilidade de atestar a morte de alguém por testemunhas é capaz de gerar erro, mas, conforme o exemplo dado, o percentual é muito baixo. Diante disso, aceita-se o corpo de delito indireto para a condenação.

A autoridade policial, de forma primária, e o Promotor de Justiça, de forma secundária (antes do oferecimento da denúncia) deverão conferir se a perícia e a juntada de provas documentais preenchem os requisitos legais, especialmente se houve alguma espécie de contraprova. Explicamos: o investigado alega que apenas segurou a vítima para não ser agredido. A contraprova seria a produção do tipo de lesão praticada na vítima, indicando se são lesões de defesa (marcas nos braços da vítima podem indicar que essa foi imobilizada pelo investigado/réu) ou de ataques (lesões praticadas no rosto da vítima, decorrentes de socos ou chutes, afastam, a priori, a alegação do investigado/réu).

O mesmo se aplica a toda forma de juntada de documentação ou perícia, em crimes contra a honra (normalmente praticados em aplicativos de mensagens), crime de dano qualificado (indicando que houve violência secundária contra a coisa e primária contra a vítima, como a destruição de porta da casa para agredir a vítima, por exemplo), dentre outros. A casuística é bastante extensiva e foge da intenção do artigo.

A questão primoridial que levantamos é que a violência doméstica e familiar contra a mulher é um processo do qual o ato de agressão em si (ameaça, lesão corporal, feminicídio, estupro marital, dentre outros) é apenas o estopim de um conflito anterior. Assim, por ser um processo, a violência invariavelmente deixa vestígios que podem ser documentados ou produzidos através de depoimentos de testemunhas ou informantes. Por isso a cautela e observações acerca da juntada de documentação complementar e perícias, que comprovem a violência.


6. CONCLUSÃO

O artigo proposto é meramente introdutório da questão relacionada à prova produzida em sede de violência doméstica e familiar contra a mulher. O operador do direito deve ter em conta que o sistema é de proteção, mas não de tutela, com as suas considerações práticas, dentre as quais, a forma de se analisar o papel da vítima quando essa alegue o direito ao silêncio ou se recuse a produzir a prova ou até mesmo preste falso depoimento em sede de instrução (para favorecer o réu).

Defendemos que, a priori, o Juiz de Direito não deve determinar a condução coercitiva da vítima, acaso essa, notificada, recuse-se a comparecer à audiência de instrução, bem como deverá evitar coagir a vítima a falar contra a sua vontade, evitando-se também, salvo indicativos da existência de dolo específico, a determinação da instauração de Inquérito Policial para apurar os crimes de desobediência, falso testemunho ou denunciação caluniosa, em tese praticadas pela vítima. E o nosso argumento é simples: o nosso sistema patriarcal, que inclui o Poder Judiciário, oprime a mulher, dificultando o livre gozo de todos os seus direitos, incluindo a proteção à integridade física e psicológica. Ao procurar o Estado-Juiz, não pode, sob pena de revitimização, ser tratada como se criminosa o fosse.

Por fim, defendemos que os problemas citados passam mais pela necessidade de busca pela proteção integral da vítima, através de toda a rede (polícia, serviço social, Ministério Público e Poder Judiciário) e pela melhoria da prova produzida do que pela colocação do ônus da condenação sobre os ombros da vítima.

Além do mais, trouxemos a questão do anger management, ou, em tradução livre, o manuseio da raiva, como ponto a ser discutido e devidamente considerado pelos operadores do direito, já que o sistema capitaneado pela Lei Maria da Penha tem como finalidade secundária a recuperação do agressor e a repactuação social, como necessidade para efetivação da garantia integral dos direitos à mulher em sua condição de gênero.


BIBLIOGRAFIA

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JIMENO, Myriam. Crimen passional – contribución a una antropologia de las emociones. Cap. 2. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2004.

JUNG, C. G. Collected Works of C. G. Jung, Volume 10: Civilization in Transition (The Collected Works of C. G. Jung Book 61) (English Edition) 2nd Edição, eBook Kindle.

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O’DWYER, Brena. Emoção”, “técnica”, raiva e amor na aplicação da Lei do Feminicídio em um júri público no Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. https://www.revistas.usp.br › article › download

SCHWARTS, Gil. July 2006. Anger management, July 2006 The Office Politic. Men's Health magazine. Emmaus, PA: Rodale, Inc.


Notas

1 O Brasil ocupa a 5º posição no ranking global, com 48 vezes mais mortes de mulheres nessa situação do que a Inglaterra, por exemplo. Vide:

2 https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias/2023/04052023-Mulher-em-situacao-de-violencia-deve-ser-ouvida-sobre-o-fim-de-medidas-protetivas.aspx Acesso em 19 de setembro de 2023.

3 Vide: “1. Tratando-se de delito cometido em ambiente doméstico e familiar, é sabido que a palavra da vítima é de extrema relevância para o esclarecimento dos fatos, quando em consonância com outros elementos de convicção acostados aos autos, como no presente caso. 2. Na espécie, a versão da vítima somada aos demais elementos de prova coligidos aos autos, todos produzidos na fase processual com observância do contraditório e da ampla defesa, possuem o condão de estabelecer a autoria e a materialidade dos delitos e embasar um decreto condenatório, não havendo que se falar em insuficiência de provas.” Acórdão 1606715, 07123728620198070006, Relator: J.J. COSTA CARVALHO, Primeira Turma Criminal, data de julgamento: 25/8/2022, publicado no PJe: 4/9/2022. https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-perguntas/direito-penal-e-processual-penal/valoracao-da-prova/a-palavra-da-vitima-nos-crimes-praticados-em-situacao-de-violencia-domestica-contra-a-mulher-e-considerada-de-fundamental-importancia Acesso em 19 de setembro de 2023.

4 A falsa acusação de violência doméstica, no contexto da Lei Maria da Penha, pode ser considerada um crime, de acordo com a legislação brasileira. A prática de fazer uma acusação falsa com o intuito de prejudicar o acusado pode configurar o crime de denunciação caluniosa. A denunciação caluniosa está prevista no Código Penal brasileiro, no artigo 339, e consiste em imputar falsamente a alguém a prática de um crime. Quando uma pessoa faz uma falsa acusação de violência doméstica contra outra, ela está imputando um crime que não ocorreu, o que pode configurar o delito de denunciação caluniosa.

5 Art. 147-B. Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação: Pena – reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.

6 Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público.

7 O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu que o juiz não pode, sem pedido da vítima, marcar audiência para que ela desista de processar o agressor nos crimes de violência contra mulher em que a ação penal seja condicionada à sua manifestação. A decisão unânime foi tomada na sessão virtual finalizada em 21/8,no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 7267. Para o relator da ação, ministro Edson Fachin, a obrigatoriedade da audiência, sem manifestação nesse sentido, viola o direito à igualdade, porque discrimina injustamente a vítima. Ele explicou que a função da audiência perante o juiz não é apenas avaliar um requisito procedimental, mas permitir que a mulher possa livremente expressar sua vontade. Segundo Fachin, a garantia da liberdade só é assegurada se a audiência for solicitada pela própria mulher, e obrigá-la a comparecer viola a intenção da vítima. Assim, o eventual não comparecimento não pode ser entendido como retratação ou renúncia tácita ao direito de representação.

8 O instituto da CONDUÇÃO COERCITIVA decorre do artigo 218 do Código de Processo Penal, com a seguinte redação: Art. 218. – Se, regularmente intimada, a testemunha deixar de comparecer sem motivo justificado, o juiz poderá requisitar à autoridade policial a sua apresentação ou determinar seja conduzida por oficial de justiça, que poderá solicitar o auxílio da força pública.

9 O Superior Tribunal de Justiça tem precente contrário à nossa posição, ou seja, pela POSSIBILIDADE DE CONDUÇÃO COERCITIVA DA VÍTIMA. Vide: AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. LESÃO CORPORAL. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR. CONDUÇÃO COERCITIVA DA VÍTIMA. FASE JUDICIAL. PREVISÃO LEGAL. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. 1. É cabível a condução coercitiva da vítima para depor em juízo, ainda que esta alegue não ter mais interesse em processar seu companheiro na esfera criminal, pois além de a ação penal ser pública incondicionada, no caso de lesão corporal por violência doméstica e familiar, o próprio Código de Processo Penal prevê a possibilidade de condução coercitiva da ofendida para depor. 2. Não ocorre nulidade no depoimento, em juízo, de vítima conduzida coercitivamente para prestar declarações, sobre lesão corporal sofrida nos âmbitos doméstico e familiar, quando há informações nos autos de que foram respeitadas todas as formalidades legais, no momento da realização de tal ato processual. 3. Agravo regimental não provido. (AgRg no HC n. 506.814/SP, relator Ministro Rogerio Schietti Cruz, Sexta Turma, julgado em 6/8/2019, DJe de 12/8/2019.). Os Tribunais tem se dividido sobre a aplicação do instituto, não estando pacificada tal matéria.

10 Essa é a regra que prevalece, inclusive após a redação trazida ao artigo 155 do Código de Processo Penal pela Lei nº 11.690/08, que dispõe que “o juiz formará sua convicção pela livre apreciação da prova produzida em contraditório judicial, não podendo fundamentar sua decisão exclusivamente nos elementos informativos colhidos na investigação, ressalvadas as provas cautelares, não repetíveis e antecipadas”. O dispositivo sacramentou a possibilidade de utilização, para convencimento do magistrado, daquelas provas colhidas durante a fase investigativa, neste caso, independentemente de contraditório uma vez que, pela letra da própria lei, referido instituto pertence à fase judicial. Ademais, a própria redação da lei deixa claro que, isoladamente, elementos informativos não são idôneos para fundamentar uma condenação, podendo, por outro lado, se somar à prova produzida em juízo, servindo, portanto, como mais um elemento na formação da convicção do órgão julgador.

11 Vide:

12 Gaslighting, ou manipulação psicológica, é um tipo de violência psicológica e emocional que costumeiramente ocorre nos relacionamentos afetivos, mas pode acontecer em outras relações – familiar, profissional e de amizade. Vide: https://www.psicologosberrini.com.br/blog/gaslighting-12-sinais-de-alerta-ficar-atento/ Acesso em 21 de setembro de 2023.

13 https://www.tjdft.jus.br/institucional/imprensa/campanhas-e-produtos/artigos-discursos-e-entrevistas/artigos/2022/silencio-da-vitima-direito-ou-armadilha Acesso em 21 de setembro de 2023.

14 https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/conteudo/arquivo/2019/07/ab16d15c52f36a7942da171e930432bd.pdf Acesso em 17 de setembro de 2023.

15 BRENA O’DWYER. Emoção”, “técnica”, raiva e amor na aplicação da Lei do Feminicídio em um júri público no Rio de Janeiro. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil. https://www.revistas.usp.br › article › download

16 JIMENO, Myriam. Crimen passional – contribución a una antropologia de las emociones. Cap. 2. Bogotá: Universidad Nacional de Colombia, 2004.

17 JUNG, C. G. Collected Works of C. G. Jung, Volume 10: Civilization in Transition (The Collected Works of C. G. Jung Book 61) (English Edition) 2nd Edição, eBook Kindle.

18 KASSINOVE, H. & TAFRATE, R.C. (2002). Anger management: The complete treatment guidebook for practitioners. Impact Publishers, Atascadero, CA.

19 Tradução livre: “O controle da raiva é um programa psicoterapêutico para prevenção e controle da raiva. Foi descrito como o uso bem-sucedido da raiva. A raiva é frequentemente resultado de frustração ou de sentimento de bloqueio ou frustração por algo que o sujeito considera importante. A raiva também pode ser uma resposta defensiva ao medo subjacente ou a sentimentos de vulnerabilidade ou impotência. Os programas de gestão da raiva consideram a raiva como uma motivação causada por uma razão identificável que pode ser analisada e abordada logicamente”. Vide mais sobre o tema em: SCHWARTS, Gil. July 2006. Anger management, July 2006 The Office Politic. Men's Health magazine. Emmaus, PA: Rodale, Inc.

20 NUCCI, Guilherme. Corpo de Delito e Exame de Delito. Disponível em:


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